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quinta-feira, 10 de outubro de 2013

REFLEXÕES SOBRE A REFORMA PROTESTANTE – Introdução (1)

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Ecclesia Reformata semper est reformando

                Há um consenso de que compreender a história é compreender a si mesmo. Por esta razão percebe-se que as igrejas evangélicas brasileira, que experimentam a mais de duas décadas um ciclo virtuoso[1]utilizando um neologismo, mas que poderá vir a experimentar em breve um ciclo vicioso[2], se é que já não estamos nele, porque estas ramificações do protestantismo nacional estão desconectadas da História à qual elas pertencem.
        Uma das razões é justamente o fato de que em sua grande maioria são anencefálicas sobre a sua própria origem histórica. Para os chamados neo-pentecostais sua história começa no dia que colocam uma placa identificando que ali tem uma nova igreja; mesmo os pentecostais, historicamente anteriores, tendem a desvalorizar sua herança historiográfica, optando por celebrarem seus “heróis fundadores” nacionais; era de se esperar que ao menos as denominações protestantes históricas pudessem aspirar uma valorização mais séria da historiologia cristão-protestante [presbiterianas, metodistas, congregacionais, batistas, episcopais], mas quando muito se contentaram em buscar apenas os fatos que lhes podiam oferecer subsídios para a sustentabilidade de seus pressupostos eclesiástico-teológicos, nesta ordem pois a estrutura eclesiástica se utiliza da imutabilidade dogmática para se perpetuar, de maneira que se descarta por completo qualquer outra coisa que não venha convergir para estes objetivos peculiares, ou tornam proscritos todos que ousem propor tais possibilidades.
              Mas em todas elas há um hífen que as conectam: a total ausência de interesse e motivação para se buscar nos fatos históricos passados, mais particularmente nesta monumental Reforma do século XVI, o instrumental para se almejar as mudanças necessárias que se fazem urgentes, visando resgatar o genuíno sentido de ser igreja cristã e o seu verdadeiro papel na sociedade humana. Quando a indiferença não é suficiente, passa-se a resistência e ao combate a todos aqueles que ousem propor tais possibilidades de reflexão e mudanças, como tão bem se registram nas páginas da história do passado longínquo ou mesmo nos novos capítulos que estão sendo escritos no momento presente.  
           Todas as denominações (igrejas) que existem e as que haverão de surgir estão interligadas e são parte integrante de uma História que se inicia nos registros das páginas do Segundo Testamento (NT), mas que retrocede aos relatos nas páginas do Primeiro Testamento (AT), que juntos perfazem a Bíblia Cristã e adotadas por todas elas, incluindo a Católica Romana, como regra de fé e prática (infelizmente pouca fé e quase nenhuma prática).
                 Portanto, não existiu, não existe e jamais existirá uma igreja autônoma, pois todas são ramificações de um mesmo tronco da História cristã e desconhecer, mesmo que por ignorância, este fato é a razão maior pela qual as igrejas evangélicas brasileiras perderam sua própria identidade cristã.
                Mais do que qualquer outra época, se faz necessário, um resgatar e um pensar da História cristã. Não apenas os fatos que interessam para viabilizar projetos eclesiásticos, mas a História em todas as suas nuanças e com todos os seus aspectos positivos e negativos.      Neste exercício certamente haverá de brotar uma pequena esperança de que venhamos a ter no Brasil igrejas cristãs evangélicas-protestantes que impactem a sociedade e produza as mudanças estruturais que a sociedade brasileira tanto necessita nesse momento histórico.
                 Um recorte desta historiografia cristã que nos propomos refletir, sem segundas intenções e no esforço de compreendê-la em suas múltiplas repercussões, é a Reforma Religiosa produzida no século XVI, mas que é resultante de anseios de séculos anteriores e que resultou em ondas avassaladoras nos séculos posteriores, alcançando o nosso tempo presente.
                  A reflexão aqui proposta sobre este recorte da historiografia cristã se dará sempre em relação a duas questões básicas: o que ela significou e o que ela significa ainda para o cristianismo, de forma mais particular, o cristianismo em suas vertentes protestantes brasileira.

Um Fenômeno Histórico
            A Reforma Religiosa ocorrida no distante século dezesseis é mais popularmente conhecida como Reforma Protestante, o que se constitui em um grande redutor no que concerne à sua abrangência e amplitude. O que ocorre naquele momento histórico no campo religioso cristão vai a muito além da criação de algumas ramificações do cristianismo, com a formação de algumas novas igrejas e/ou denominações (luterana, calvinista, anglicana), pois em suas repercussões afetara todo o cristianismo em todos os lugares e que transpassando os limites temporais continua repercutindo ainda hoje.
            Portanto, não podemos e nem devemos interpretar essa Reforma como se fosse um fato isolado, como se não houvesse conexões com o antes e com todos os fatores que naquele momento convergem para ela. Não podemos nos deixar levar por preconceitos ou ideias superficiais (ou espirituais), correntes, que desconectam aquele movimento religioso de seu caráter histórico natural, como tão bem coloca Giacomo Martina em sua introdução: “... a Igreja não vive e não opera abstratamente, mas nas condições sempre mutáveis de espaço e de tempo” (1995, p. 20). E ainda segundo ele, a História da Igreja, e particularmente para nós este recorte histórico da Reforma, vive uma tensão permanente entre dois polos:
“a tentação de se confundir o cristianismo com
as formas contingentes próprias das diversas épocas, com sua defesa desesperada, como se sua queda significasse o fim do cristianismo,
e, do outro lado, a tendência de se excluir a Igreja de qualquer relacionamento com a sociedade em que vive, a pretensão de despir os valores cristãos de qualquer condicionamento histórico. Na realidade, a defesa desses valores deve estar inserida no tempo, mas deve se distinguir das situações históricas nas quais eles se expressam. E o risco da Igreja como um todo, e em particular o de cada geração cristã: não se limitar à guarda de situações que exauriram a sua função, e encontrar na fé a força e a luz para encarnar de modo novo os valores antigos. O equilíbrio, difícil de ser atingido, supõe um contínuo dinamismo e custa, muitas vezes, sangrentas renúncias”. (1995, p. 20)
  
       Três corretivos iniciais precisam ser feito. Primeiro o que ocorre em meio aos evangélicos denominados reformados, que querem ver naquele evento uma espécie de teofania sagrada, iniciada por uma única fagulha de um baluarte destemido, no caso Lutero e/ou qualquer dos demais líderes da época, e que este fogo santo queimou em ritmo uniforme, purificando a igreja cristã. O segundo equívoco vem daqueles que se identificam como oposição ao movimento reformista daquela época, que desejam ver nele apenas uma revolta de uma pequena parcela da “santa igreja”, originada por descontentes e oportunistas de plantão, que se mobilizaram em meio às circunstâncias que lhes foram favorecidas na época. O terceiro corretivo esta relacionado à todos aqueles que imbuídos de um espírito totalmente a-religioso, tentam extirpar todo e quaisquer vestígio das implicações genuinamente religiosas que permearam esta Reforma e todos os eventos que a produziram e reproduziram, que a tornaram o evento histórico de maior significância e operou as mais incisivas mudanças na História deste lado Ocidental do Mundo. 
            Sem canonizar ou depreciar esta Reforma Religiosa, necessitamos enxergar nela um movimento histórico natural – de irrupção inesperada, sim, e que produziu e reproduziu consequências inimagináveis, mas que, é um fenômeno de raízes profundas e firmemente interligadas com a História, que surgiu e se desdobra na proporção de situações ocasionais que a tornaram possível, numa consumação natural. Esta percepção é a mais sensata e coerente, pois os acontecimentos históricos de grande amplitude e repercussão, benéficas ou maléficas, sempre estão encadeados a antecedentes ponderáveis e jamais ocorrem de improviso, mas “... possuem nascentes profundas e prepararam-se com lenta e aturada fadiga” (JANNI, 1937, p. 19).[3]
            Concluo esta primeira postagem com as palavras de Leite:
Contra a ignorância, não há outra cura senão o conhecimento. E no que se refere à Reforma, a nossa maior necessidade é de reler a história, avançando do estudo escolástico da sua teologia para o impacto cultural positivo dos reformadores. E lia muito que dizer a respeito, no tocante à educação, à arte, à economia, aos direitos individuais e a cada campo da vida humana” (2006, p. 27)
           



Texto revisado em 18/10/2013
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan PereiraMestre em Ciências da Religião
ivanpgds@gmail.com


Referências Bibliográficas
JANNI, Ugo. Apologia do Protestantismo. São Paulo: Athena Editora, 1939.
MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero a nossos dias I - O período da reforma. São Paulo: Edições Loyola, 1995.
LEITE, Cláudio Antônio Cardoso e LEITE, Fernando Antônio Cardoso. Evangélicos ou evangélicos? A igreja brasileira entre os exemplos do passado e o dilema do presente. Cosmovisão Cristã e Transformação. CARVALHO, Guilherme Vilela Ribeiro de, [Org.]. Viçosa (MG): Ultimato, 2006.







[1] círculo vicioso é uma sucessão, geralmente ininterrupta e aparentemente infinita, de acontecimentos e conseqüências desfavoráveis e inevitáveis, mas que se realimentam mutuamente tornando a situação quase impossível de reverter, pois ação e reação se tornam muito difíceis de identificar.

[2] círculo virtuoso é a mesma coisa só que ao reverso: É uma sucessão contínua de ações e reações que se realimentam sem causas e consequências facilmente identificáveis, mas o resultado, ao contrário do círculo vicioso, é favorável.

[3] Ugo Janni (1865-1938) que durante a sua vida e produção literária participou ativamente de manifestações culturais e religiosas realizadas na Itália desde o final do século XIX até às vésperas da II Guerra Mundial, fazendo viagens e conferências no exterior. Foi pastor e teólogo, dedicou a sua vida à causa cristão, que ele chamou de "pancristianismo". A tradução deste livro e o conceito do pancristianismo e sua divulgação acalentou os corações daqueles que desejavam uma unificação dos múltiplos ramos protestantes cristãos no Brasil.

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