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segunda-feira, 22 de setembro de 2014

PERSONAGENS DO PROTESTANTISMO – Zwinglio o Exegeta (1484-1531)

Zwinglio - A Bíblia e a Espada
seus instrumentos de trabalho. 

"O cristão nada mais é que um cidadão fiel e bom 
e a cidade cristã nada mais é que a Igreja cristã."
            Quando falamos sobre a Reforma Religiosa e/ou Reforma Protestante que ocorreu no século XVI, um trio de personagens se sobressai: Lutero, Calvino e Zwinglio.[1] Entretanto, se os dois primeiros são conhecidos por suas obras teológicas e exegéticas, Ulrico Zwinglio[2] (1484-1531) ficou caracterizado apenas por suas realizações eclesiásticas e seus esforços políticos para levara adiante o movimento reformatório nos Cantões Suíço.[3] O seu pensamento teológico e suas obras exegéticas foram praticamente ignoradas, como se fossem de valor menor do que seus dois contemporâneos mais vistosos. Todavia, suas contribuições nestas duas preciosas áreas do conhecimento teológico-exegético foram e continuam sendo de grande valia para uma compreensão mais ampla do movimento reformado, cujas ondas sísmicas ainda se fazem sentir nos dias atuais.
            Em 1522 inicia seus estudos de hebraico, ainda que reconhecesse as dificuldades inerentes nesta língua, mas determinou-se a perseverar até que pudesse alcançar algum sucesso. Neste período teve oportunidade de encontrar o grande professor de hebraico Andreas Boschenstein, que havia ensinado Melanchthon em Wittenberg e que elaborara um gramatica da língua hebraica. Juntamente com outros zuriquenhos, entre os quais Felix Manz, dedicou-se ao aprendizado do idioma que seria fundamental para seu trabalho exegético e teológico.
            Com dedicação e determinação alcança um nível elevado no conhecimento da língua hebraica, que juntamente com outros companheiros acadêmicos tornaram possível empreender uma tradução dos textos bíblicos com o objetivo de oferecer pela primeira vez uma Bíblia que poderia ser compreendido pelo povo suíço. Sua maior contribuição neste empreendimento inédito esta na sua tradução dos Salmos, que apesar de estarem pronto em maio de 1529, somente puderam ser publicados após a morte de Zwinglio, em 1532. Uma importante e avaliada opinião pode ser encontrada nas palavras do Professor V. Ryssel a partir do Salmo 23:
“A tradução de Zuinglio do ano 1529 é uma tradução sem erros, a tradução mais literal possível das expressões hebraicas, que nem sempre leva em grande consideração as expressões alemãs. O verbo hebraico dá também, segundo suas condições etimológicas, o mais preciso wieder (de volta) na frase “er bringt meine Seele wieder” (ele traz de volta minha alma), ao contrário de “erfrischt” (refrigera) na tradução de 1531 que traz o sentido segundo a forma alemã. Não é segundo a forma alemã também “in meinem Angesicht” (em minha face) no versículo 5, que na tradução posterior foi melhorado. Por outro lado a frase “auf den Pfad der Gerechtigkeit” (na trilha da justiça) no versículo 3, que se manteve na tradução posterior, não se origina de uma falta de consideração com as expressões alemãs, já que no versículo 2 não se traduz “Wasser der Ruhe” (águas da tranquilidade), mas “ruhige bzw. stille Wasser” (águas tranquilas). Zuínglio no entanto o traduz assim porque ele assume que a expressão (= em caminhos retos) não pertence mais à imagem, mas – como isto acontece frequentemente na poesia hebraica – abandona esta imagem e então deve ser entendida em sentido ético. Deve-se assumir isto também porque em Zuínglio, mais do que em Lutero, encontra-se o esforço de expressar mais claramente possível a imagem do pastor. Por isto ele traduz no versículo 2a: “er ernert (alpet) mich” – na Bíblia de 1531 “er macht mich lüyen” = ele me deixa em paz – e no versículo 2b: “er treibt mich”, cuja expressão também é usada no versículo 3 (e aqui também pela Bíblia de 1531), onde no entanto se encontra na última assim como em Lutero, no versículo 2b, o mais neutro “er führt mich”. Uma tentativa muito bela de interpretar a imagem mais vividamente é apresentada no versículo 4, onde Zuínglio traduz o verbo do antecedente condicional não pelo simples “gehen” (ir) ou “wandern” (caminhar), mas é expressa muito incisivamente pela expressão “sich vergehen” (= sich verlaufen, sich verirren, morrer, se perder). A tradução de 1531 escolheu a melhor palavra para a imagem no versículo 4, “Todesschatten” (sombras da morte), no lugar da menos precisa “Tod” (morte), isto talvez porque também era a primeira vez neste ínterim que esta expressão mais precisa (que hoje também é livremente indicada) se tornou conhecida. O relato literal no versículo 5 “mein Trinkgeschirr ist voll” (meu copo está cheio) seria adaptado para o estilo alemão, na verdade de forma completamente oportuna, substituído por “und füllest mir meinen Becher” (e enche meu cálice). (EGLI, 1900, p. 156-157).  
           
Bíblia de Zurique 1531
Impressa por Christoffel Froschauer 
Deste modo, aproximadamente três anos antes da publicação da famosa Bíblia de Wittenberg (1534), a cidade de Zurique já possui uma Bíblia na linguagem vernácula, em um belíssimo trabalho tipográfico ilustrado em parte por Holbein.[4]
            A partir de 1525 ele estabelece um curso de Bíblia livre para o clero e estudantes da escola de latim e o curso acontecia diariamente, exceto as sextas-feiras.[5] Auxiliado por estudante ou um colega desenvolvia seus comentários sobre os textos bíblicos, utilizando como ferramentas o texto hebraico e a septuaginta (versão grega do texto hebraico), o texto grego do Novo Testamento e a tradução latina da Vulgata (versão oficial da Igreja Romana). Desta maneira ele podia comparar os diversos textos e esclarecer os equívocos encontrados nas traduções, justificando sua exegese. Estas aulas públicas de Bíblia receberam oficialmente, em 1535 o nome de “Propheizei [Profecia]”, mas conforme informação de Pollet, “estava provavelmente em uso antes dessa data” (1988). Este termo grego, utilizado por Paulo (I Co. 14.1-3), era utilizado com o sentido de instruir, exortar e encorajar e desta forma, Zwinglio indica que suas exegeses dos textos bíblicos estavam debaixo da direção e influência do Espírito Santo. No período de 1525-1531 ele principia estudos que abrangeram 21 livros do Antigo Testamento, seguindo uma ordem cronológica; nas Sextas-Feiras estudava-se o Novo Testamento: os Evangelhos, as Epístolas Paulinas e a Primeira Epístola de João.
            Ao optar por uma predominância dos livros do Antigo Testamento em seus estudos públicos, bem como em seus tratados teológicos, revelam o propósito que ele perseguia de submetê-los ao crivo dos ensinos neotestamentários. Para Zwinglio o estudo e a compreensão da mensagem veterotestamentário deve ser feita à luz de Cristo e não o inverso; sempre se poderia encontrar no Antigo Testamento o que foi claramente expresso em Cristo. Desta forma, ele sempre foi resistente a discutir o Novo Testamento no Antigo, mas não o impediu de utilizar amplamente os ensinos do Antigo para combater os conceitos formulados pelos anabatistas.
            Os anabatistas entendiam que o batismo deveria ser a resposta consciente e explicita de uma experiência pessoal de conversão, portanto não aceitavam o batismo infantil.[6] A argumentação de Zwinglio tomava como princípio o preceito da circuncisão instituída por Deus em relação aos israelitas; assim como a circuncisão não era a causa da salvação do israelita, mas se constituía em um sinal da Aliança, o batismo infantil cristão também se constituía em um sinal de que o filho(a) do cristão estava inserido(a) na Nova Aliança em que seus pais foram inseridos mediante a profissão de fé em Cristo.  Todavia, para Zwinglio a circuncisão não se constituía em uma confirmação da fé de Abraão, mas um compromisso de conduzir seus filhos a Deus dentro dos termos da Aliança anteriormente estabelecida. Ele assim se expressa: “O nosso batismo tende a mesma coisa que a circuncisão anteriormente, é o sinal da aliança que Deus fez conosco através de seu Filho”. (STEPHENS, 1999, p. 263).[7]
            Os anabatistas entendiam que todo o Antigo Testamento havia perdido seu valor mediante a Nova Aliança estabelecida por meio de Cristo, mas Zwinglio rejeita esta tese, pois segundo ele esta interpretação dos anabatistas acabava por rejeitar a Deus, que se revela em ambos os Testamentos.[8] Para fundamentar o valor do Antigo Testamento ele invoca quatro textos do Novo Testamento: Mt 22.29; João 5.39; Ro.15,4 e 1Cor. 10.11, os quais trazem em comum o apelo ao Antigo Testamento como fundamento da mensagem cristã. Em 1 Coríntios 10.11 esta escrito: “Essas coisas aconteceram a eles como exemplos e foram escritas como advertência para nós, sobre quem tem chegado o fim dos tempos” (NIV), referindo-se à experiência de Israel no deserto. Segundo ele, conforme seu “Prefácio aos Profetas”, incluindo também o verso 6 de 1 Coríntios 11, todos os acontecimentos registrados no Antigo Testamento se revestem de simbolismos e servem para nosso uso, pois, foram escritos para o nosso benefício. Esta é a convicção que esta subjacente da leitura que Zwinglio faz de todo o Antigo Testamento à luz da revelação de Cristo (STEPHENS, 1999, 107).[9]
            Sua convicção de que a Antiga e a Nova Aliança eram basicamente uma, lhe permitiu usar os textos veterotestamentário em seus debates com os católicos e também com Lutero, a cerca da Última Ceia, onde ele a coloca em paralelo com a Páscoa judaica (Êxodo 12.11). Em seus trabalhos exegéticos, as analogias entre a circuncisão e o batismo, a Páscoa e a Última Ceia emergem com constância, como realça Stephens: “o método comparativo é um elemento constante nos escritos de Zwinglio, tanto nos comentários como em outros textos” (1999, p. 92).
            É importante destacar ainda que Zwinglio estava plenamente convencido de que toda a Bíblia foi escrita para o bem da humanidade. Em sua ênfase do sentido natural da Escritura ele acaba por destacar o sentido moral e espiritual dos textos bíblicos. Para ele o sentido moral do texto é a aplicação natural para o ouvinte, que vai trazer compreensão correta do texto e consolo para a vida dele. Outra vertente de sua exegese estava na sua preocupação filológica, pois entendia a necessidade de pregar o texto bíblico em sua expressão autêntica – por isso gastava tanto tempo em conhecer profundamente a língua hebraica e grega, em quais os textos bíblicos foram escritos.
            Por fim, se Zwinglio minimizava a utilização da interpretação alegórica, por outro lado ele utilizou extensivamente a interpretação tipológica. Para ele as figuras de Noé, Isaque, José, Moisés apontavam para a revelação de Cristo. Evidentemente que em alguns casos ele torna-se arbitrário em suas intepretações tipológicas, mas com certeza muitas histórias e personagens do Antigo Testamento encontram seu significado e relevância na revelação cristológica do Novo Testamento.


Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira - Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Outro Blog
Reflexão Bíblica


Referencias Bibliográficas
BROTTON, Jerry. Uma história do mundo em doze mapas. [Tradutor: Pedro Maia Soares]. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
DREHER, M.N. A crise e renovação da igreja no período da reforma. [ Coleção Histórica da Igreja], v. 3. São Leopoldo: Sinodal, 1996, p. 62-65.
EGLI, Emil. Zwingli als hebraer. Suiça: Journal Zwingliana, Swiss Reformation Studies Institute, 1900 [1/8]. Disponível em: http://www.zwingliana.ch/index.php/zwa/article/view/2163/2073. Acesso em 15/09/2014. [Tradução: http://www.e-cristianismo.com.br/pt/outros-reformadores/256]
LINDBERG, Carter. As Reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001. (Capto. 7)
MAINKA, Peter Johann. Huldrych Zwingli (1484-1531), O Reformador de Zurique – um esboço biográfico. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2001. http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciHumanSocSci/article/viewFile/2758/1893.
RAATH, A.W.G. e FREITAS, S.A. Calling and resistance - Huldrych Zwingli’s (1484-1531) political theology and his legacy of resistance to tyranny. South Africa: Department of Constitutional Law and Jurisprudence University of the Free State. Disponível em: http://puritanism.online.fr/puritanism/Calling%20and%20Resistance.pdf. Acessado em 15/09/2014.
STEPHENS, W. Peter. Zwingli le théologien. [Histoire et Société]. Genève: Labor et Fides, 1999.
POLLET, J. V. Huldrych Zwingli et le Zwinglianisme. Paris: Vrin, 1988.


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[1] Apenas sete semanas separam o nascimento de Lutero e Zwinglio, e ambos foram coautores do movimento da Reforma Protestante. Enquanto os 500 anos do nascimento de Lutero (10/11/1983) foi amplamente divulgado com artigos nas mais importantes revistas [Times, Newsweek, The New York Times Magazine e National Geographic] e celebrações nas Igrejas e Academias por todo o mundo; o aniversário de 500 anos de  Zwinglio (01/01/1984) passou despercebido, exceto em Zurique e arredores, seu lugar de nascimento e morte.
[2] O próprio reformador mudou a grafia de seu nome. O nome de batismo era Ulrich Zuínglio, em referência ao santo católico Ulrich de Augsburg. Nos dias de estudante latinizou o nome para Udalricus e posteriormente optou por Huldrychus (gracioso, benevolente), com a qual passou assinar suas correspondências. Mas nos documentos oficiais de Zurique manteve-se seu nome original “Meister Uolrich” (ROTHER, Rea. Ulrich, Huldreich oder Huldrychus? Disponível em: http://www.zh.ref.ch/a-z/zwingli/lexikon-h/huldrych-ulrich. Acesso em 15/09/2014.
[3] É importante realçar que os conceitos fundamentais do pensamento político posteriormente implementado dentro do movimento reformado deve ser atribuído aos trabalhos iniciais de Zwinglio, que pode ser legitimamente considerado como o “pai” do Pensamento político reformado. Seus conceitos foram transportados por Heinrich Bullinger, politica inglesa e João Calvino na reforma escocesa. (RAATH e FREITAS, p. 01).
[4] A Bíblia de Zurique tem uma longa tradição originária do reformador Huldrych Zwingli e seu grupo de tradutores. Em 1524 foi publicada a primeira parte da tradução contínua. Em 1531 foi publicada a Bíblia completa em Zurique, também chamada de "Bíblia de Froschauer" em homenagem ao famoso impressor de Zurique Christopher Froschauer, trazendo como ilustração “o primeiro mapa publicado em uma Bíblia. O tema era o êxodo do Egito” (BROTTON, 2014). Ela surgiu três anos antes da tradução da Bíblia do reformador alemão Martinho Lutero. Nos anos seguintes, a tradução foi trabalhada em várias ocasiões. As últimas ocorreram em 1907 e 1931. Graças a sua linguagem clara e compreensível, a Bíblia de Zurique é considerada um clássico. Muitos a consideram a tradução para o alemão mais fiel ao idioma original.
[5] Nas sextas-feiras ele pregava em Salmos na Praça do Mercado da cidade, de maneira que não somente os moradores urbanos, mas também os habitantes das zonas rurais podiam livremente ouvir sua exposição.
[6] Ainda hoje muitos ramos evangélicos brasileiros que não batizam crianças: Batista, Assembleia e outros.
[7] Para ele a exigência dos anabatistas em rebatizar, equivaleria a uma re-crucificação de Cristo.
[8] Este interpretação dos anabatistas, depreciando o valor do AT esta muito próximo da interpretação de Marcião (séc. II d.C.) que foi implacavelmente combatido pelos chamados Pais da Igreja e condenado como herege. (cf. http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/2013/10/fichario-biografia-marciao-de-sinope.html).
[9] Na verdade ele esta seguindo a forma de interpretar o AT feito pelo apóstolo Paulo, conforme Gálatas 4 e também em 2 Coríntios 8 – portanto, a interpretação de Zwinglio nada tem de platônico, mas é um método histórico-cristológica. 

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A Inomogeneidade da Reforma Religiosa do Século Dezesseis

Introdução

            A inomogeneidade é um termo da física para descrever um corpo e/ou sistema que   não tem as mesmas propriedades em todos os pontos. Creio que esse termo descreve bem a Igreja Cristã, pois apesar de ser uma “Igreja” com um “Evangelho”, desde suas origens sempre teve que lidar com uma multiplicidade de opiniões, muitas delas divergentes e contraditórias. Uma atitude simplicista não pode mais ser aceita em relação à história do cristianismo, estabelecendo formas estáticas e homogeneas. É no mínimo ignorância ou falseamento da verdade moldurar a Igreja Primitiva como um corpo homogêneo e perfeito, que na medida em que o tempo perpassa vai se degenerando até chegar ao ponto de uma quase total corrupção nos dias de Constantino, para então inrromper no século 16 através de um movimento hemogenicamente perfeito.
            Por outro lado não é aceitável o pressuposto de que a Igreja Cristã não possuiu uma continuidade histórica. Desde sua formação inicial, apesar de suas convulsões eclesiastica e doutrinária, é possível identificar em grau maior ou menor sua vitalidade; é possível vislumbrar no transcurso dos séculos abundantes expressões de vivificação, bem como de declínios em seus princípios basilares; podemos apreciar os multiplos movimentos reformistas que foram calados no transcorrer dos séculos cinco ao quinze, mas que eclodiram de forma iniqualável no século dezesseis, com todas as suas implicações e desdobramentos, que como ondas sismicas abalaram e trasnformaram todas as esferas da Sociedade. Como tão bem resume Amaral:
O que não podemos fazer é adotar o que a história não justifique; nem conceder que os melhores tempos da Igreja tenham sido imaculados, ou que os seus piores tempos nunca deixassem de registrar abençoadas expressões de vida cristã (1962, p. 19).

Movimentos Preparatórios

            Podemos evocar tranquilamente os testemunhos históricos sobre a vocação da Igreja Cristã para se regenerar continuamente através de seus movimentos e convulções, muitas vezes aceitos ou rejeitados, que perseguiram inconteste a harmonização entre os conceitos e práticas da Igreja com seus fundamentos emanados das páginas evangélicas, que sempre proporcionaram a revitalização dela, em dissonância com as lideranças amorfas e retrógadas, cujos únicos interesses eram somente multiplicar seus privilégios à sombra de despotismos insaciáveis dos detentores dos demais poderes civis.
            Em movimentos convulsionais que se multiplicavam exponencialmente a Igreja Romana vai sendo exposta à opinião pública. São estes movimentos que haverão de produzir a atmosfera propicia para que venha a ocorrer uma Reforma Religiosa ampla, na busca de harmonizar-se a letra e o espírito do Evangelho.
            Esta patente que nestes movimentos reformistas sempre se abrigaram diversas vertentes evangélicas, mas mesmo incorrendo em falhas e equívocos, persistentemente buscavam resgatar os princípios originais da Igreja apostólica neotestamentária. Milhares de cristãos anônimos e esporádicos vultos maiores foram instrumentos para manter-se a chama da fé cristã acesa mesmo nos períodos mais escuros da Igreja. Eram homens e mulheres que acercados pela indiferença e a corrupção, ansiavam por vida e fidelidade. A grande maioria foi cruelmente esmagada pelos poderes constituídos e quase nada delas sabemos, mas restaram preciosas informações sobre alguns destes luminares da grande candeia dos fiéis e sinceros que amavam Jesus e a Igreja.
            A grande Reforma Religiosa do século dezesseis é o rio maior que recebe em seu trajeto todos estes afluentes. Esta Reforma jamais teria força suficiente para realizar tudo quanto foi feito, sem a força advinda de cada cristão e de cada movimento que a antecedeu, incluindo aqueles dos quais nada ficamos sabendo. Desde o século doze, quando o sistema religioso estava totalmente enrijecido, multiplicam-se movimentos e vultos que clamavam por mudanças. Independentemente dos equívocos, alguns até mesmo absurdos, que sugiram neste momento histórico, o desejo de renovação é o fator unificador. São representativos da consciência religiosa e do anseio de uma espiritualidade genuína.

 O Movimento Monástico

            Este movimento continha um elemento evangelicamente errático, pois propunha uma alienação do cristão da Sociedade, na busca de uma espiritualidade com melhor qualidade. Jesus jamais se afastou do ser humano e se isolou da sociedade humana[1]. Contudo, o Movimento Monástico tornou-se um reserva da piedade cristã e manteve a Igreja ligada aos aparelhos. Muitos utilizam lentes de aumento nas críticas aos monges e monastérios, que certamente no transcorrer do tempo acabaram realmente se afastando cada vez mais de seus pressupostos iniciais, todavia, ainda assim, eles representaram um esforço em relação a situação caótica e corrupta das instituições eclesiásticas do período. Se no século quinto o movimento já é algo significativo, nos séculos doze e treze torna-se de significância e relevância que não pode ser ignorado. Só para lembrar, Martinho Lutero é um monge e todas as suas experiências religiosas, positivas e negativas, ele as teve durante seu período de reclusão. São ao derredor das instituições monásticas que se multiplicam os movimentos livres de leigos que buscam do seu jeito a piedade e a pureza.
            São estes movimentos periféricos, já nos fins do século doze, que expõem publicamente os anseios da necessidade de se corrigir os excessos eclesiásticos e resgatar a espiritualidade que se extinguia rapidamente. Impossível não citar o movimento liderado por Pedro Valdo, em Lião, que em momento posterior se instalam nos vales do Piemonte, na França, já assumidos como Valdenses e que permanecem ativos até o século dezesseis, e que após a Reforma uniram-se a uma Igreja formal. Como não se lembrar dos menos afortunados Albigenses, ao sul da mesma França, que manifestando um espírito evangélico renovador, com uma dose de extravagâncias, mas que foram de forma inclementes eliminados pela Igreja Romana.
            A partir do século doze, navegaram por essas correntezas da independência espiritual e ferrenha oposição aos grassos erros eclesiásticos e teológicos, personagens da envergadura de um Guilherme de Occam, que ousadamente levanta a bandeira contra o despotismo hierárquico, e proclama sua mensagem evangélica com a coragem e intrepidez dos profetas veterotestamentarios diante de seus reis corruptos e dos apóstolos diante das autoridades judaicas e dos primeiros cristãos diante do todo poderoso Imperador Romano. Tal mensagem, mesmo depois de calado seu pregador, manteve-se ecoando e alcança o século imediato, ressurgindo na vida e proclamação de Wyclif, notável exegeta dos textos bíblicos, tradutor deles para a língua vernácula inglesa, defensor intransigente do livre exame por parte dos leigos. Seus esforços encontram ecos na distante Boêmia, onde o professor da Universidade em Praga, João Huss, lança-se de corpo e alma nessa correnteza bravia, que acaba por leva-lo ao martírio pelos algozes eclesiásticos, o mesmo destino de seu continuador e companheiro, Jerônimo de Praga. Em Florença, no século quinze, realça a figura do destemido pregador Savonarola, ainda que sua vertente estivesse mais na reforma de costumes, e que atraiu igualmente para si a ira daqueles que não desejavam mudança alguma e paga o preço de suas convicções e intrepidez com a própria vida.
            Por trás destas iniciativas individuais movia-se invisivelmente um desejo crescente e cada vez mais incontido de mudanças e transformações na vida religiosa e eclesiastica. Outro movimento que expressa esses anseios incontidos pode ser claramente visto no movimento dos místicos. Personagens da envergadura de um Eckhart e Tauler, nos séculos XIII e XIV respectivamente, saturaram ainda mais a atmosfera reformista e foi fundamental como preambulo da futura Reforma que já se divisava no século XVI.
            Portanto, o século XV inicia com o ar totalmente impregnado pelos anseios irrepremiveis de renovação. Diante de tantas pressões internas e externas a Igreja reage com a convocação dos chamados concílios reformadores. Como foram reuniões conciliares oficiais, ainda que houvesse um esboço de disposição em operacionar as mudanças necessárias, seus resultados foram totalmente minimizados pelos interesses maiores da manutenção da ordem predominante. No Concílio de Pisa destacam-se os esforços notáveis de um Gerson e um D’Ailly, que apontavam para uma democratização bem como para ações moralizadoras do governo eclesiastico; o Concílio de Constança amplia as temáticas do Concílio anterior, ainda que relevando as questões mais relevantes, acaba por votarem diversas mudanças de relativa importância, mas deixou um mote nefasto ao sentenciar, o indutado, João Huss que advogava insistentemente por mudanças mais explicita. O Concílio de Basiléia e seus procedentes mantiveram as mudanças centrais em compasso de espera em uma expectativa de que a atmosfera reformista perdesse intensidade. Mas a cada Concílio e as frutrações advindas deles, aumentava a indignação das consciências cansadas de erros, de despotismos, de práticas abusivas e que almejavam tempos melhores para a Igreja Cristã e para o povo.
            O papel de relevância da Renascença jamais pode ser minimizada na Reforma Religiosa que estava às portas. Com sua reenvidicação para uma Teologia mais bíblica e menos Escolástica, sua redescoberta do valor das fontes do Cristianismo primitivo para uma prática religiosa mais relevante, a utilização do método crítico nos estudos teológicos e históricos, sua nova cosmovisão, seu intransigente senso da liberdade individual, somente poderia desembocar na proposição de uma reforma ampla e inrrestrita da religião vigente. A agenda renascentista, sem dúvida alguma, antecipou inumeros intens que os reformadores a partir de Lutero defenderam e lutaram por implementarem. Todavia, não é correto amalgamar estes dois movimentos, pois se possuem muito em comum, também contem irreconciliaveis diferenças. A Renascença com seu antropocentrismo contam apenas com a força e capacidade do ser humano, mas os reformadores com seu teocentrismo contam com o poder de Deus. Os reformadores renascentistas tecem as críticas, apontam os erros e indicam soluções paliativas, mas os reformadores cristãos vão além, pois indicam também a solução definitiva – a reconciliação do ser humano com Deus, por meio de Jesus Cristo.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião

Referências Bibliográficas

AMARAL, Epaminondas Melo do. O protestantismo e a reforma. [Coleção Otoniel Mota – I] São Paulo: Livraria Saleluz, 1962.
DREHER, M.N. A crise e renovação da igreja no período da reforma. [Coleção Histórica da Igreja], v. 3. São Leopoldo: Sinodal, 1996, p. 62-65.
JANNI, Ugo. Apologia do Protestantismo. São Paulo: Athena Editora, 1939.
LINDBERG, Carter. As Reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001.
MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero a nossos dias I - O período da reforma. São Paulo: Edições Loyola, 1995.

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[1] O Evangelho proposto por Jesus Cristo tinha que manter contato permanentemente com as pessoas, para que assim como sal, pudesse não apenas preserva-las, mas também operar as mudanças necessárias na própria Sociedade.