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quarta-feira, 26 de julho de 2017

Antes da Reforma Protestante – Corrupção e Desvios Teológicos


            Este é o ano em que se comemoram os 500 anos da Reforma Protestante ocorrido hoje no longínquo século XVI. E de fato poucos movimentos religiosos cristão tiveram tamanha relevância e repercussão como este. A história desta Reforma não se relaciona apenas com a Igreja Cristã, mas implica em toda Sociedade, não apenas daqueles dias, mas ainda hoje se faz sentir seus efeitos.
            Mas como todo e qualquer evento histórico eles são decorrentes de eventos anteriores. Nesse e alguns outros artigos vamos resgatar esse contexto histórico-religioso que certamente proporcionaram um melhor entendimento das razões que culminaram com a Reforma Protestante que tão rapidamente se espalhou por toda Europa e demais países adjacentes e abalando os poderes da Igreja Católica Romana e do próprio Império que lhe dava sustentação.
            Temos plena consciência de que a Reforma Protestante esta interligada a toda sorte de áreas e setores que compõe a Sociedade como a politica (nacionalismo), a economia (novos mercados/Índia, África e América), as artes e letras (renascentismo e humanismo) e as mudanças de classes sociais (ascensão burguesa) que estão ocorrendo conjuntamente às questões religiosas. Todavia, como a Reforma ocorre primariamente dentro da Igreja Cristã (Romana) é necessário entendermos o que estava acontecendo e quais foram os motivos teológico-religiosos que impulsionaram esse movimento tão viral e abrangente em suas ações e realizações que afetaram e ainda afetam todo cristianismo mundial.
A Penitência e a Absolvição nas mãos do Clero
            Os cristãos dos primeiros séculos receberam uma mensagem muito simples e direta, utilizando as palavras do apóstolo Paulo ao carcereiro da cidade de Felipos que estava prestes a tirar sua própria vida e que interrompido pelo apóstolo volta-se para ele e pergunta: o que preciso fazer para ser salvo? E Paulo não tem nenhuma dúvida ao responder: creia no Senhor Jesus e será salvo! Mas com o passar dos séculos tudo isso se modificou e a salvação passou a ser um processo longo, árduo e muito caro.
            Se antes a salvação era uma questão direta do pecador arrependido com Jesus Cristo, agora antes de chegar a Jesus esse peregrino terá que enfrentar a cara burocracia eclesiástica que foi desenvolvida nos antros da eclesiologia católica romana. Agora já não era suficiente a simplicidade da fé em Jesus para garantir a salvação, é preciso somar a essa fé as boas obras meritórias e a plena submissão às autoridades eclesiásticas, cujo caráter era muito mais do que apenas duvidoso, uma vez que estas autoridades eram nomeadas pelo critério geopolítico e econômico, em detrimento das qualificações espirituais e religiosas. Evidentemente que a salvação pela fé foi mantida nos dogmas eclesiásticos a custo de muitos e intensos e até sanguinários Concílios, todavia, na prática se construiu um sistema de perdão de pecados cujo percurso era ampliado na mesma proporção em que aumentava os interesses inescrupulosos dos detentores do poder eclesiástico romano.
            Ainda no Concílio de Trento (325) a penitência foi classificada como sendo a segunda tábua sobre a qual o náufrago (pecador) encontra salvação, assim como o batismo é a primeira tábua. Ainda nesse Concílio o sacerdote católico romano passou a ser considerado indispensável na intermediação entre o pecador e Deus, estando revestido do poder de pronunciar a absolvição.
            Avançando a ampulheta do tempo, no raiar do século XII a singela fé do carcereiro de Filipos não lhe daria mais do que uma senha na fila das inumeráveis penitências que deveria realizar antes de adquirir o perdão de seus pecados: deve andar descalço, utilizar trapos em vez de roupas normais, deixar sua casa e sua terra natal e peregrinar por terras distantes, renunciar ao mundo e abraçar a vida monástica. Um pouco antes, no século XI havia se tornado uma prática corriqueira os açoites voluntários (autoflagelo), e na Itália pessoas de toda sorte de classes sociais, homens e mulheres, velhos e crianças fazem procissões às centenas e até milhares, entrando nas vilas e cidades, cobertos apenas por uma túnica, em pleno inverno europeu. Nas ruas ouvem-se os gritos e gemidos pelos açoites auto infligido.
Nascem as Indulgências
            Diante de tanto sofrimento e miséria cria-se um caminho alternativo menos dolorido e mais cômodo – nasce a famigerada indulgência (“indulgência”, tirada do  latim,  significa  perdão  ou  quitação  de  uma  dívida).  O criador desta proposta coube a João Faster, Arcebispo de Constantinopla, coincidentemente a capital do Império. Seu discurso alcança os ouvidos dos milhares que transitam pelos descaminhos da autoflagelação e da desesperança – nós (clérigos) haveremos de fazer as penitencias por vocês de maneira que vocês não precisaram carregar mais seus fardos insuportáveis – mediante uma pequena contribuição de quem pode, mais e de quem não pode, menos. Vozes corajosas se levantaram contra essa aberração mercantilista, mas foram caladas e sufocadas.
            Logo os papas de plantão descobriram os benefícios próprios advindos da demanda dessas indulgências. Para encher os cofres insaciáveis de uma Igreja crescentemente opulenta nada melhor do que um recurso fácil sob o disfarce de uma contribuição voluntária (qualquer semelhança com o evangelicalismo brasileiro atual não é mera coincidência). É preciso fundamentar e torna-la indispensável para que os recursos possam fluir continua e abundantemente. Os teólogos de plantão trabalham arduamente nesse embasamento e Alexandre de Hales[1] (Doctor Irrefragabilis e Theologorum Monarcha) e St. Cher no século XIV produz uma fundamentação para doutrina da indulgência. Para eles as obras e as ações dos santos (lideres cristãos que morreram em martírio) e mesmo de Cristo deixaram um apreciável tesouro de bons atos não usados inteiramente por eles. Havia, pois, um saldo de santidade que teria formado um capital celestial, um tesouro dos méritos que estaria disponível aos interesses do Santo Papa. Como único detentor da chave, o papa podia recorrer ao Tesouro dos Santos armazenado no céu para poder distribuir o seu conteúdo entre os crentes.
            Uma bula papal emitida por Clemente VII declara as indulgências um artigo de fé. Para ele o sacrifício de Cristo e os sacrifícios dos mártires deram à Igreja um tesouro que perdura à própria eternidade. A custódia e administração desse tesouro foram confiadas ao Vigário de Cristo na terra, ou seja, ele mesmo e seus sucessores papais. Quem naquela época ousaria atacar uma origem tão sagrada? John Wyclif, classificado entre os denominados pré-reformadores, que estava alcançando a maturidade quando Clemente assumiu a cadeira papal, pregou e escreveu “da indulgente fantasia do tesouro espiritual do céu, de que cada papa se torna despenseiro absoluto, coisa sonhada e sem fundamento”.
            Mas a indústria das indulgências evolui rapidamente. Surgem sempre novas indulgências para cada ocasião. Dependendo do pecado oferecem-se indulgências para longo prazo que podem chegar a dez, vinte e até mais de cem anos. E o que parecia ser um caminho mais suave vai se tornando um caminho cada vez mais ardiloso e nefasto para o pobre (ou rico) pecador.
Purgatório
            Mas como cobrar uma divida de longo prazo se a vida é tão breve (as pestes e toda sorte de malefícios tornava a vida humana limitada). Chegando a morte o pecador ficará livre de sua dívida e entrara feliz na eternidade? Claro que não! Enquanto o pecador estiver em débito com a Igreja ele está impossibilitado de entrar no céu. Mas onde ele vai ficar após a morte na terra? No Purgatório é claro!
Antes mesmo de Agostinho, século IV, houve diversos teólogos que mencionavam um estado intermediário entre o céu e o inferno, onde as almas poderiam ser purificadas para adentrarem permanentemente no céu.[2] Mas até Agostinho era tratado ou compreendido como um processo de salvação espiritual, sem ingerência da Igreja. Mas agora, nos séculos XII e XIII a ideia de que o purgatório é um “lugar à parte” toma forma.
No século XIII o Purgatório triunfou na teologia e no plano dogmático. A sua existência é certa, tornou-se uma verdade de fé da Igreja. Sob uma forma ou sob outra, num sentido muito concreto ou mais ou menos abstrato, é um lugar. Oficializa-se a sua formulação. Em dar sentido pleno a uma prática cristã muito antiga: os sufrágios pelos mortos. (LE GOFF, 1995, p.345).
O Papa encontra no Purgatório a resposta para a questão da indulgência não recebida. Enquanto no Purgatório o pecador poderia mediante as indulgências alcançar o crédito necessário para ter seus pecados perdoados e finalmente descansar na glória celestial. Apavorados cotidianamente pelos pregadores de plantão a população torna-se refém dos tormentos futuros. Algumas pinturas daquele período revelam os horrores com os quais os fieis eram aterrorizados pela Igreja e seus clérigos terroristas. Quem permitiria que seus entes queridos pudessem sofrer tamanho sofrimento e ainda correr o risco de ser lançado no inferno? As moedas enchiam os gazofilácios eclesiásticos que remetidos a Roma erigiam Catedrais, financiavam toda sorte de luxo e riqueza aos seus bispos e sustentavam seus exércitos e todo esse dinheiro era compartilhado com os reis e imperadores de ocasião.
Com João XXII surgem as chamadas indulgências fiscais onde os pecados mais degradantes são catalogados e lhes conferido valores de indulgências: incesto, assassinato, infanticídio, adultério, perjúrio, roubo – cada pecado com seu devido valor correspondente.
O papa Bonifácio VIII, o mais ousado e ambicioso depois de Gregório VII, foi mais criativo que seus antecessores. Ele publicou, em 1300, uma bula papal pela qual ele anunciava que nos próximos cem anos, todos aqueles que visitassem (fizessem peregrinação) a cidade de Roma, obteriam uma indulgência plenária. O sucesso foi imediato e multidões advindas de todas as adjacências da Itália, França, Espanha, Alemanha, Hungria e de todos os demais lugares onde a igreja se fazia presente invadiram a cidade romana – em um único mês contam-se duzentos mil peregrinos. Todos esses peregrinos traziam suas ofertas e o Papa e sua opulenta máquina eclesiástica viram seus tesouros se encherem a transbordar. Mas a ganância humana não tem limites e logo se diminuiu o tempo para cada jubileu de cinquenta, depois de trinta e três, e, finalmente, a vinte e cinco anos.
Mas é preciso destacar que muitos continuaram a honrar a Igreja da idade média. Por causa desses homens e mulheres que se mantiveram aguerridos aos princípios basilares do cristianismo a Igreja permaneceu sendo Igreja, apesar de todas as aberrações e desvios de suas lideranças eclesiásticas. A Igreja cristã continuou sendo o lugar de acolhimento para os desvalidos e abençoador para os publicanos e pecadores que careciam do perdão de seus pecados. Grandes servos de Jesus Cristo resplandeceram como luzeiros no meio das intensas trevas que os circundavam e sal de uma sociedade permanentemente depravada (alguma diferença dos dias atuais?). Nas vilas mais obscuras, nos conventos e mosteiros encontram-se aqueles que anseiam por uma Igreja livre e bíblica. Nas ainda incipientes universidades as penas, tinta e papel começam a produzir uma crescente onda de protestos cada vez mais veementes.
Ainda que se possa confundir o papado com a Igreja, são coisas distintas assim como a água e o óleo que se não misturam. Os desmandos e corrupção dos clérigos romanos não podem ser confundidos com a vivacidade da Igreja Cristã que permaneceu e permanece ainda hoje, apesar de todas as formas de deturpações produzidas pelas ortodoxias humanas.  A Reforma do século XVI visava os desmandos eclesiásticos, mas acabou atingindo a própria Igreja que haverá de se fragmentar ao longo dos séculos posteriores. E se faz justo dizer que apesar dos desmandos papais, muito dentre esses foram instrumentos da providência divina para preservação da Igreja mediante o poder e ambição dos reis e imperadores que tentaram destruí-la ou dominá-la ao longo da história.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
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[1] Foi um filósofo e teólogo inglês, notável pensador na história da escolástica e da Escola franciscana.
[2] Desde os grandes Padres da Igreja do século IV, Ambrósio, Jerônimo e Agostinho – fazem menção que as almas de certos pecadores poderiam talvez vir a ser salva durante um determinado período de provação (LE GOFF, 1995,p.17).

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