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quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Os Primeiros Movimentos Eclesiásticos na Igreja Cristã

            O ano de 2017 marca o 500º aniversário da chamada Reforma Protestante, que tem seu marco na afixação das 95 teses elaboradas pelo até então agostiniano alemão Martinho Lutero, na porta da Catedral de Wittenberg (31 de Outubro 1517) onde exercia seu oficio eclesiástico e também lecionava na Universidade da mesma cidade. Esse singelo gesto do até então desconhecido clérigo agostiniano tornou-se o pavio que fez detonar a maior e mais significativa reforma religiosa na Igreja Cristã Ocidental. Todavia, essa reação contestadora de Lutero não foi a primeira, mas uma das centenas ou milhares que o antecederam no desejo de corrigir os equívocos pelos quais a Igreja Cristã sempre esteve sujeita, ainda nas páginas do Segundo Testamento e/ou Novo Testamento, mas que na mesma medida em que os cristãos começam a subir os primeiros degraus da escada social também começam a se afastar mais rapidamente do projeto original estabelecido por Jesus para sua Igreja.
Diante da rápida expansão e ascensão social-econômica, bem como uma falta de instrução geral, diversos conceitos estranhos e o mundanismo penetram nas comunidades cristãs a tal ponto que no fim do terceiro século surgem os primeiros movimentos intestinais na Igreja dos quais três movimentos podem ser destacados por sua repercursão:
Os Montanistas: combatiam o gnosticismo e tem sua origem na Frígia (135-160), com Montano, um sacerdote pagão convertido e batizado por volta de 155, e vai encontrar em Tertuliano um de seus defensores mais ardorosos. Ainda que almejasse um retorno ao Cristianismo segundo os moldes primitivos “à Igreja primitiva, em oposição à corrupção do cristianismo corrente” como sempre acontecem com os movimentos eles foram muito além.  Os montanistas exigiam que aqueles que haviam apostatado no período de perseguição, antes de Constantino, somente deveriam serem recebidos de volta à comunhão através de um novo batismo ou rebatismo (precursores dos Anabatistas no século XVI); passaram a valorizar tanto os dons de “profecia” e o da “cura pela fé” que acabavam descriminando os demais cristãos e os mais extremistas dentre eles acabavam valorizando mais suas próprias profecias em detrimento da própria Bíblia. Por outro lado, se opuseram fortemente contra a hierarquia eclesiástica; defenderam ardorosamente o sacerdócio universal dos crentes; rejeitaram o segundo casamento [divorcio – hoje tão natural entre as igrejas evangélicas brasileiras]; eles jejuavam frequentemente; a castidade e celibato voluntário era estimulado; mas também, infelizmente, foram os primeiros a distinguirem o pecado mortal do venial, podendo esse segundo tipo ser perdoado pela igreja. A ironia é que em decorrência destes dois últimos ensinos eles foram rejeitados e classificados como heréticos, mas alguns séculos depois ambos os ensinos, celibato e distinção entre pecados, foram incorporados nos dogmas da Igreja Romana. Foram necessários muitos concílios para enfim serem oficialmente condenados.
Os Novacianos: Poderíamos dizer que foram montanistas despidos de alguns excessos. Durante o terrível período de perseguição sob o comando de Décio (250) um grande número de cristãos apostatou de sua fé. Em consequência levantou-se dentro da Igreja Cristã duas vertentes: uma maioria que defendia o retorno destes à comunhão sem qualquer restrição e outro grupo minoritário que tinha em Novaciano (Novato) seu líder. Ele era dotado de uma inteligência aguda, tinha formação literária e filosófica de primeira ordem e seu nome apareceu em Roma pela primeira vez, como eminente membro do clero romano, autor de um notável tratado sobre a Trindade, que lhe valeu o título de fundador da teologia romana. Chegou ocupar a função de bispo de Roma durante a vacância em decorrência da perseguição do Imperador Décio, depois da morte de Fabiano, mas quando da nova eleição foi preterido por Cornélio que era mais moderado. Levanta então a questão dos que haviam abjurado a fé cristã e agora desejavam retornar à comunhão da Igreja, apoiado por muitos que traziam em seus corpos os sinais das torturas que haviam sofrido durante a perseguição, sem negar a fé, advindos das igrejas do Norte da África e da Ásia Menor, onde as perseguições foram mais violetas; esse grupo ficou conhecido como novacianos e defendiam que esses apóstatas deveriam além de um período de penitência para demonstrarem genuíno arrependimento, serem rebatizados.[1] Acabaram recebendo a alcunha de “Cátaros” (puros). Entretanto, a maioria dos outros presbíteros, juntamente com Cornélio cuja influência era muito grande, tinha uma posição diferente. Diante da persistência de Novaciano, durante um concílio realizado em Roma 251, ele e seus apoiadores foram excomungados. Então Novaciano fundou uma nova igreja, no qual ele foi o primeiro bispo. Esta igreja atraiu muitos adeptos, que concordavam com seu sistema disciplinar; e continuou a florescer em muitas partes da cristandade (Espanha, Armênia e Mesopotâmia), até o quinto século.
Os Donatistas: Durante a terrível perseguição promovida pelo imperador Diocleciano a exigência de entrega dos livros sagrados dos cristãos criaram uma situação complexa: acatar a ordem imperial poderia assegurar a proteção do bispo e seu rebanho, mas por outro lado aproximava-se muito de uma apostasia (FREND, 2002, p. 427). Outro grupo mais radical entendia que todos os traditores,[2] não apenas deveriam fazer penitência como deveriam ser batizados novamente para voltarem à comunhão e que os bispos que assim tivesse procedido não mais poderiam ministrar os sacramentos (FRANGIOTTI, 1995, p. 64).[3]
Em Cartago (África) o bispo Mensúrio, adotou a opção de entregar os escritos cristãos ao procônsul romano e censurou aqueles clérigos que cortejando o martírio se negavam a fazê-lo (FRAZÃO,1976, p. 58). Durante os séculos III e IV a Igreja africana era muito forte e o episcopado muito bem organizado o número dos bispos era realmente numeroso; por exemplo: no ano 220, se reúnem 90 bispos africanos para julgar um colega seu. No ano 256, com São Cipriano à frente, se reúnem 87 bispos para examinar o problema do batismo administrado pelos hereges. A diocese de Cartago era a segunda em grau e rendas entre todas as sedes episcopais do Ocidente, atrás apenas de Roma. Seu bispo era o primaz do norte da África.
A perseguição já havia então amenizado quando morreu Mensúrio, bispo de Cartago, no ano 311 d.C., para sucedê-lo foi escolhido o bispo Ceciliano. Mas alguns opositores não quiseram reconhece-lo, dentre eles Donato, que era um dos bispos de Numídia. Num concílio que se realizou em Cartago (ano 312) depuseram Ceciliano e para ocupar seu lugar escolheram Majorino, ao qual após sua morte o sucedeu o próprio Donato, organizando e fazendo o movimento crescer por todo o Norte da África (daí o nome donatistas). Ensinavam, entre outras coisas, que os sacramentos administrados por sacerdotes indignos eram inválidos. [4]
Quando Constantino derrotou Maxêncio em 28 de outubro de 312 e se tornou senhor da África, encontrou uma igreja cristã toda dividida. Muitas dioceses tinham dois bispos, cada um fiel a um dos dois grupos. A expansão do cisma provocou a intervenção do Imperador Constantino. Este mandou examinar as acusações proferidas contra Ceciliano: um sínodo, presidido em Roma pelo bispo Milcíades (313), reconheceu a legitimidade do bispo Ceciliano e rejeitou os donatistas. Estes não se davam por vencidos. Por isto Constantino convocou em 314 um Sínodo Geral do Ocidente, que, reunido em Arles (França), confirmou a sentença de Roma e acrescentou explicitamente que a ordenação conferida por um bispo traidor é válida; além do que, reprovou o uso, pelos cristãos donatistas da África, de rebatizar quem tivesse sido batizado por hereges. Mas os donatistas ignoraram todas e quaisquer autoridades sobre eles, pois diziam que a sucessão apostólica tinha sido quebrada e que todos os bispos da Europa e da Ásia eram cismáticos. A fé cristã e, portanto a genuína igreja cristã estaria agora apenas neles. O que tinha começado com a rejeição dos traditores agora se exigia a qualquer pessoa que desejasse fazer parte desta igreja - os donatistas o rebatizavam, pois não viam validade no batismo dos outros. Até bispos, mulheres e crianças deviam fazer uma penitência pública antes de serem aceitos. O donatismo só começou a desaparecer com a invasão dos vândalos do Norte da África a partir de 429; a invasão muçulmana no século VII pôs o termo definitivo à facção de Donato.
            Fica evidente por estes exemplos que a Igreja Cristã em sua caminhada sempre encontrou focos de resistência que reivindicavam um retorno aos princípios elementares de um modelo eclesiástico bíblico, ainda que muitas vezes esses grupos dissidentes acabassem se afastando ainda mais do próprio modelo bíblico de igreja.
            A proximidade com o poder Imperial e posterior amalgama com essa esfera de poder politico vai desfigurando a Igreja Cristã de tal modo que no período da Idade Média ela vai perdendo suas características de Igreja e vai assimilando cada vez mais as características politicas-econômicas de um grande império religioso.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Outro Blog
Reflexão Bíblica


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[1] Todavia, no epistolário de Cipriano há uma carta escrita antes do cisma romano em que o conselho de presbíteros adota uma atitude mais moderada do que Novaciano adotou depois, e o próprio Cipriano é testemunha de que Novaciano havia subscrito essa missiva (Ep. V:4; PL, IV. 240; ANF, V. 283).
[2] Uma alcunha de infâmia dado àqueles que, para salvarem suas vidas durante a perseguição, tinham entregue as Escrituras ou bens da igreja aos perseguidores.
[3] O tema não era novo. Já em 251 acontecera em Roma o cisma novaciano, em torno do problema dos lapsi, isto é, daqueles cristãos que de algum modo negaram a sua fé durante o tempo da perseguição de Décio.
[4] O donatismo tem muita importância na história agostiniana porque Santo Agostinho, sendo já bispo, lutou contra eles. Santo Agostinho afirmava, por exemplo, que Cristo é o autor dos sacramentos e os sacerdotes e bispos são simples ministros ou canais pelos quais a graça se comunica aos homens. Esta posição foi adotada pela ortodoxia da Igreja Cristã.